20 de outubro de 2007

A pobreza é um lugar comum, por isso perdoem-me

Em Portugal existem 2 milhões de pessoas a viver abaixo do limiar da pobreza. No sítio onde vivo, no centro de Lisboa, vivem também muitos muito ricos e muitíssimos muito pobres. Eu não sei se esses fazem parte das estatísticas, mas alguns vão ao talho da Gomes Freire. Hoje, enquanto pensava, indecisa, se levava borrego ou vitela para um jantar com amigos cá em casa, entrou uma mulher que não era cliente habitual. Estranhámos logo, clientes e empregados, a maneira como entrou, apressada, de peito levantado, como se tivesse respirado fundo antes de entrar. Alta, loura, teria trinta e cinco anos, vestia uma blusa de alças que deixava ver uma pele clara com bronze de países tropicais. O cabelo estava despenteado, cara bonita sem pintura. Teria acordado há pouco tempo e saído à rua para as compras sem tomar o pequeno-almoço, como eu.
- Quanto custa estas aqui, perguntou, com ligeiro sotaque do Brasil.
- São 6,98 o quilo. O talhante pegava hesitante na caixa das almôndegas, mas ela disse:
- Não, não, deixa. Vou levar “isto” de fígado. Dirigiu-se rápida ao fim do balcão, onde estava o fígado e estendeu a mão ao empregado.
- Hoje só temos de porco, disse o talhante, com voz de simpatia e eu percebi que não seria a primeira vez que ela pedia fígado, a coisa mais barata.
Olhámos para o “isto” que ela mostrou ao empregado. Eram três euros. Uma moeda de dois euros e uma moeda de um euro. Silêncio e depois…nada. Eu que me “virasse” com a vontade de chorar que veio de repente. Na cara dela não havia espaço para acolher a minha piedade. O silêncio que se gerou foi o único sinal de pena e, ao mesmo tempo, de respeito. Ninguém se ofereceu para lhe pagar as almôndegas. Sentimos que não seria aceite esse gesto de ajuda. Ela era pobre mas não se sentia pobre. Não se dá esmola a quem não se sente pobre. (Ou seria esta conclusão uma forma de justificarmos a nossa inércia cobarde?) A cara respondeu ao silêncio compondo um ar de sobranceria. Eu pensei…sim, quem desdramatiza isto, é porque já viveu muito pior.
- Mas quer em bifes ou cortado aos bocadinhos?
Claro que é aos bocadinhos estúpido, pensei. Sim, era aos bocadinhos que ela queria. Para render. Ela deixou os três euros no balcão e saiu rápida. Passou muito perto e vi-lhe manchas ainda frescas de leite na blusa. Era mãe. Perdoem-me estas lágrimas.

1 comentário:

Anónimo disse...

São por vezes estranhas as curvas da vida, mas admirável a forma como nessa estranheza, alguns a não deixam de viver, lutando.