11 de outubro de 2007

O silêncio das inocentes

É normal ouvirem-se na cidade do Porto os gritos das gaivotas. Por isso, quando calha ouvir-se mais o silêncio…há quem fique baralhado. O dia não é o mesmo. Parece que há qualquer coisa errado com as coisas. Quando o que falta é daquelas coisas que toda a vida existiram, mais difícil se identifica a ausência. O primeiro sentimento é de pura baralhação e a cabeça parece que anda aérea. Mas o que é que raio se passa?! O homem que eu vi absorto a olhar para o chão, de mãos nos bolsos, ali para os lados da Casa da Música, descobriu a razão da sua inquietude em pleno diálogo com um vizinho.
- João, viva, novidades?, perguntou o vizinho quando saía do prédio. Mas a resposta foi só um “hum”…O homem, nos seus cinquenta, continuou de cabeça baixa, mãos nos bolsos, olhando para os sapatos.
- Homem, então, isso vai ou quê? O homem lá “acordou” e respondeu ao cumprimento, tirou as chaves de casa do bolso e ficou com elas nas mãos, brincando com elas, um bocado desajeitado.
- Nem parece teu, estavas aí a contar as formigas ou quê? Olha, vou buscar frangos, anda daí, bebemos um fino.
Neste ponto, o homem levou a mão ao estômago e teve um esgar de náusea. Fosse o que fosse, o vizinho não notou, mas a cara do homem iluminou-se e ele tirou os olhos do chão e espetou-se a olhar para o céu.
- As gaivotas…não se têm ouvido as gaivotas!, disse isto assim de rajada e, como a frase lhe pareceu ter surpreendido o vizinho, calou-se, um pouco envergonhado. Um homem feito, mãos para trabalhar e família para sustentar, cismando nas inocentes gaivotas? Isso, no tempo dele, seriam provavelmente “caprichos de mulheres”.
- Parece que não se tem ouvido as gaivotas, insistiu, dando um tom mais indiferente ao caso. Não foi ele que reparou, o “parece que…” dá muito jeito nestas situações.
- Diga João, as gaivotas o quê? Estranhou o vizinho.
- As gaivotas…parece que não se têm ouvido, então não reparou?
- Ah, é verdade, é verdade. Não se têm ouvido não. Deve ser do tempo…Então não quer vir João?
- Ah, vou pra casa, tenho lá o neto.
- Cumprimentos à patroa, João.
Mas não foi para casa, ficou cá fora, à porta do prédio, de braços cruzados, a cara descontraída, contente por ter desatado o nó, um pouco triste com o silêncio no céu do Porto.

Sem comentários: