Imagino que os super-hiper-mega-mercados dariam histórias bem mais emocionantes. Cada corredor seu segredo, cada repositora de patins uma aventura. Mas a mim calha-me melhor a mercearia da Rua Gomes Freire, perdoem a insistência. Já lhe achei mais piada, antes do balcão modernaço e das nabiças embrulhadas em celofane como se fossem rosas senhor. Há reveses na vida que temos que superar, não é verdade? O “progresso” é um deles. Deixei de lá ir por quinze dias em protesto por os meus espinafres já não virem com terra, mas ultrapassei a coisa. Comi uns chocolates para arribar e ganhei coragem. Fui lá hoje e quem é que lá estava? Nada mais nada menos que A Velha. A desaparecida senhora, a mãe da D. Lurdes. A verdadeira dona da casa. A genuína merceeira. Foi com profunda alegria que a vi ali sentada, sufocando por completo o banquinho baixo de madeira. Entrei, como sempre, às pressas, fazendo o meu teatro de dona de casa atarefada que não sou capaz de ser. E estaquei ali mesmo, frente aos seus feios olhos grandes observando a vida através de mim. Não sei como se chama, acho que prefiro não saber. Será “A Velha”. Foi ela que me deu as más-vindas à maneira desconfiada de merceeira quando, mesmo à hora de fechar, lá entrei pela primeira vez. Ia desertinha de comprar o que era preciso para fazer uma sopa que me fizesse sentir em casa na primeira noite de independência. Qual seria o cheiro da minha sopa? Qual seria o cheiro da minha casa? Foi aí que começou o namoro com aquele cochicho com fruta da época em caixas à porta, uma mercearia como outra qualquer em qualquer outra rua de Lisboa. A Velha mirava-me o jeito, atrapalhava-me os gestos disparando silêncios descarados à insolência das minhas perguntas: “Não tem courgetes?” “Queria uma couve coração, só tem lombardo?” “Estas cenouras parecem velhas!”
- É tudo bom, disse-me, voz de trovão prensado, garras travadas no balcão, peito insuflado por um orgulho eficaz que nunca hei-de compreender. Meti a couve lombardo, as cenouras e a viola no saco, paguei e saí, sem mais prosápias.
Uma vez, pouco tempo depois, medimos forças numa disputa em que o que estava em jogo era apenas o mau feitio de cada uma. Queixei-me das maçãs, que não sabiam a nada. E ela mandou-me comprar maçãs ao supermercado se não gostasse das dela.
O ambiente na loja azedou, as clientes fizeram silêncio e recuaram uns passos, mostrando de que lado estavam e não era do meu. Mas eu estava com falta de paciência e quase contente na minha insolência.
- Ouça lá, se eu quisesse maçãs que não sabem a nada, é que não vinha cá, ia ao supermercado, não acha?, atirei, ignorando a boa educação.
Sem perceber, tinha feito pontaria ao orgulho da Velha merceeira.
- No sábado tenho Bravo Esmolfe, gritou-me, tão comprometida como irritada, já eu na rua. Ganhei o duelo e arrependi-me logo a seguir da parvoíce.
Entretanto, A Velha ganhou um indiferente e pouco convincente respeito pela minha pessoazinha. Cumpre o que julga ser seu dever e informa-me, tal como a qualquer outra cliente regular, se as laranjas não forem assim tão doces.
Mas não se esforça. Já passou “a pasta” à filha, à D. Lurdes, que é quem faz agora as “honras da casa”. Aparece raramente dos fundos da loja com o mesmo casaco de malha mas atende como se fizesse um favor a quem lá vai.
Ganhou a impaciência que se cola aos feitios introvertidos e avessos a intimidades, ao fim de muitos anos a aturar gente por obrigação. É a D. Lurdes, a filha, de olhos igualmente feios, que apazigua a irritabilidade da mulher que engrossou e endureceu com a idade como as coisas vivas.
Quando não pode deixar de se irritar quando vê alguma cliente a escolher os morangos com as mãos, quando vê mais uma unhada numa manga do Brasil, ou quando vê alguém deitar fora as folhas ainda boas de uma alface antes de a pôr no saco, é a D. Lurdes que lhe diz, numa língua que só elas conhecem, qualquer coisa que a faz suspirar e obrigar-se ao silêncio.
Há luxos a que se pode dar, a D. Lurdes, que ainda corre por inteiro nesta vida e tem uma filha no secundário que a faz sentir nova apesar dos seus 50 anos.
Graças à Velha e ao pai, a D. Lurdes pode deitar fora o pão que secou e que já ninguém vai comprar. A Velha não pôde livrar-se da poupança obsessiva herdada dos tempos em que conheceu a fome, quando veio para Lisboa e andava “ao papelão”.
Estas histórias nem a neta, “a menina”, as conhecerá. É só ela que consegue amaciar os músculos faciais da Velha, quando entra de sorriso aberto na loja, vinda da escola, a cheirar ainda a leite com chocolate e a perfume infantil.
Foi pela neta que perguntei na altura de pagar, hoje. (A insolência ainda cá está, mas há mais espaço para coisas que fazem menos mal à saúde). Ela encolheu o olhar, antes esticado até à parede da frente, e pespegou-o no meu durante eternos segundos num frente-a-frente inesperado.
A Velha tinha aceite ceder por um instante, deixando-me aquecê-la com a lembrança da neta. O “obrigada” que me dirigiu naquele olhar elevou-me à categoria de sua igual, como se eu pudesse, já hoje e não daqui a muitos anos, compreender as mulheres que engrossaram e endureceram com a idade como as coisas que vivem.
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