4 de abril de 2008

Que Deus a perdoe, à ti Arminda



Não sei o que me chama nas velhas, talvez a sua capacidade de surpreender a minha ignorância da vida. Só as velhas têm aquelas certezas todas e alguma razão para as ter. Podem ser amargas, matreiras, sábias, mansas, feras, loucas ou sãs, mas são sempre alguma coisa definitiva. As boas. Eu gosto de tentar imaginar o que as levou ali, àquele sítio tão definitivo da vida. Hoje lembrei-me da “ti” Arminda, acho que era Arminda, vizinha do meu avô nos entremeados de quintas, descampados e estradas novas por entre as casas velhas nos subúrbios quase aldeia da cidade. Sempre a vi vestida de preto, com lenço na cabeça e tudo, e por isso sabia que era viúva. Parava na janela da minha Paty, que evitava com a sua graça as maledicências da mais fervorosa das beatas. Morena, baixinha, redondinha, uma bolinha embrulhada em pano preto com uma boca pequenina de onde ouvi sair muitos “améns” e “deus me perdoe”. Aquela mulher seria a encarnação da santidade aos seus próprios olhos. Nunca faltava aos deveres de católica e levantava-se de madrugada para limpar a igreja e as imagens todas antes da missa das seis. Eu, uma impressionável miúda de 13 anos, tinha-lhe um certo temor quando a ouvia pregar moralidades à janela da minha Paty. Criticava as outras viúvas da rua por serem “gaiteiras”. A minha Paty explicou-me que a ti Arminda era de uma aldeia onde antigamente as viúvas vestiam de preto para toda a vida, e durante os primeiros dois ou três anos não podiam sair de casa, nem para estar com a família, nem sequer abrir as janelas, nem para estender a roupa. Se o fizessem “pareceria mal” e seria considerado uma “falta de respeito” ao marido. Lembro-me quando ela passou de “beata maligna” a “velha maluca” aos meus olhos. Era o “dia dos mortos”, 01 de Novembro, e ela ia ao cemitério. Bateu à janela para uns dedos de conversa com a minha Paty antes do autocarro chegar. Ia ter com três ou quatro viúvas amigas para cumprir mais uma obrigação: limpar a campa e pôr flores. Não que a do defunto dela precisasse, dizia, mão no peito, porque, em primeiro lugar, os restos mortais do marido falecido há trinta anos já não estavam numa campa, estavam depositados numa caixa num dos gavetões do cemitério. Em segundo lugar, porque o gavetão seria com certeza o mais limpo de todos. O bairro inteiro sabia-o, a ti Arminda ia ao cemitério todos os 365 dias do ano. O que eu não sabia, e o que me chocou profundamente, foi perceber que a ti Arminda tinha levado a outro nível as suas “obrigações” para com o marido e para com o que entendia serem os mandamento da Igreja. Abriu o saco de plástico que levava pendurado no braço e mostrou os objectos que eram a causa da sua cara de …sim, de enterro: Uma escova grande e outra mais pequena, muito gastas, uma garrafa de lixívia e panos.
- “Tem que ser”, disse, no seu rosto de sofrimento feliz, essa expressão facial doentia que alguns católicos antigos ostentam.
E depois, com um orgulho fanático nos olhinhos pretos e pequeninos:
- “É só uma vez por ano Dona M., mas sou a única. Tem que ser. Era o que faltava que não lavasse os ossinhos do meu santo Aníbal que Deus o tenha, coitadinho”.

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