23 de dezembro de 2007
Um Santo Natal e uma suculenta couve Penca
Mercearia na Rua Gomes Freire, sábado, 12:00. A velhota é “habituée”. A D. Lurdes, a merceeira, dá-me aquele levantar de sobrancelha de quando se percebe que o caldo está entornado… A velhota tinha entrado com ares de quem passou mal a noite, rugas amarrotadas e papos feios nos olhos. Mirei-a. Baixinha e redonda, sacode-se de um lado para o outro, não pára quieta. Remexe nas hortaliças, espreita o balde das azeitonas, apalpa as mangas do Brasil, chega uma Bravo Esmolfe ao nariz, tudo a enjoa, senta-se no banco de madeira, suspira, levanta-se e olha para o assento, tira um lenço e limpa-lhe a sujidade invisível com ar de nojo, volta a sentar-se, levanta-se outra vez, abre caminho impertinente até ao expositor da rua, entra na loja aos empurrões, traz laranjas e tangerinas, deposita-as no balcão, volta às hortaliças, baixa-se até aos pés e descobre uma couve Penca.
Não era de supor que uma velhota rabona (rabina velha há-de ser rabona, não?), com ar de quem passou mal a noite, beiça caída e extra-queixo por muitos e muitos anos a infernizar a vida aos outros, fizesse esta lida toda de bico calado, pois não?! Enquanto cirandava, espalhava o que hoje se diria má onda pela mercearia. E fez-se silêncio, porque o levantar de sobrancelha da merceeira foi o sinal de que se ia cantar o fado:
- Ai não me diga nada ó Lurdes, do Natal, eu não quero ouvir falar no Natal, não quero. O Natal, ora o Natal, o que é que tem o Natal? Antes de eu nascer já havia Natal! E eu já tenho …anos (tossiu e não se percebeu a idade, eu acho que foi de propósito, mas devia ter 60). O Natal…ãh, ãh (gagueja, irrita-se), eu sei o que é o Natal, é porcarias na televisão o dia todo.. (acalma-se e cala-se por um momento, foi a altura em que cheirou a maçã Esmolfe) hum, hum, sim eu sei muito bem o que é o Natal. Andam praí a dizer Bom Natal a torto e a direito e o Natal não é nada disto. É um dia como ós outros, sempre foi e há-de ser. É para comer com a família? Eu como com a família nos outros dias, ahã, (aclara a voz com uma tossidela). Calou-se e pensei que talvez já tivesse saciado as raivas. Mas foi quando se baixou e percebeu que ainda havia uma couve Penca (para mim era uma couve portuguesa e ponto final) esquecida no caixote das hortaliças, que se deu o milagre.
– Ai ó Lurdes, é Penca? A velhota, quando levantou a fronha, já era outra. Fez aquela pergunta com uma alegria tão genuína, com um tom de voz tão macio, até infantil, que deixei escapar uma gargalhada. Então era só isto que era preciso para acabar com aquela rabugice insuportável, uma couve?! Ri-me com vontade da natureza da vida e da gente. Olhou-me desconfiada e, eu, que não queria estragar-lhe o momento, disse não faça caso, achei graça ao nome da couve, não conhecia, mas se é assim boa também queria uma é pena já não haver. Acho que ela comeu a minha desculpa, porque à saída desejou-nos “um Santo Natal” e aí então é que foi, até a plácida D. Lurdes deixou ver um sorriso.
2 comentários:
só mesmo uma penca para amaciar uma fronha ;o)))))
lol! bem visto
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