Já todos sabem que tenho um fraquinho por aquelas mercearias antigas escondidas num numa rua qualquer de Lisboa. Do chão de pedra ao balcão de madeira escurecida passando pelo relógio por cima da balança de pesos, tudo se conjuga para forrar as histórias que de lá nascem. A mercearia que tem sido alvo dos meus enlevados protestos é a da Gomes Freire, também já se sabe. Recentemente passou por uma “make over” cosmética que garantiu mais higiene sem afectar a sua beleza alfacinha. Mas afinal, percebi há dias, o “very tipical” não tem que se esgotar nos caprichos da merceeira nascida nas beiras especialista em tudo o que tenha a ver com frutaria e hortícolas. Numa rua mais abaixo, a Luciano Cordeiro, apareceu uma mercearia/drogaria cujos donos já aprenderam quatro palavras em português: “sim”, “obrigada”, “doces” e “frescos”. É o que chega. É um casal jovem que atende ao balcão. Os dois de pele morena e cabelos escuros, ela, mal-encarada apesar dos seus esvoaçantes vestidos indianos, ele com um permanente sorriso e esforçando-se por aprender mais uma palavra: “manga, si ah?”. Da primeira vez que fui lá ver fiquei mal impressionada. Sim, era tudo a metade do preço da mercearia da Gomes Freire mas não tinha nem metade da qualidade. Tudo velho, das verduras à fruta, incluindo algumas laranjas podres. Peguei numa e mostrei-lhe:
- Olhe pra isto, está tudo podre! Ele só disse “si” mas percebeu a ideia e foi buscar uma caixa nova mas levantou o cartão e afinal…mais laranjas podres. Ele não falava português mas deu-me razão: “naao bom”. Mas na semana passada, quinze dias depois, passei lá vinda do trabalho, já oito da noite, e a porta estava aberta. E o homem ficou visivelmente contente. Saiu do balcão e foi direito à caixa das laranjas: “ah hoje larajas, si? Mouto frescas ah?” A memória do homem impressionou-me, eu seria incapaz.
Trouxe a experimentar e sim, “mouto doces”. Aos poucos, o casal está a aprender os gostos da gente do bairro do Conde Redondo e arredores, de todo o tipo, desde a couve portuguesa à mandioca, laranjas e pêra abacate. Porque, à excepção de uns frascos de picante feitos em casa e que eu não me atrevo a provar, a mercearia não tem nada indiano a ser os donos. Claro que o chão podia ser lavado mais vezes. Para o casal, não há aparentemente nada de mal em ter um pombo a voar pela loja adentro ou a picar as folhas velhas espalhadas pelo chão. Mas reparo que a arrumação também está a melhorar. E eu penso que não pode haver mais “very tipical” que esta mercearia, símbolo da Lisboa de sempre, a do encontro de todas as culturas.
2 comentários:
a esse ritmo, só te falta vestir um colete azul com letras brancas estampadas para superares largamente as cotas da ASAE ;o)))
(agora sim, sem hieróglifos)
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